Publicado pelo Estadão- 06/02/2025
Por Igor Nascimento de Souza e Guilherme Martins
Preocupa o rápido avanço que tais plataformas vêm experimentando, passando, em poucos anos, de meros auxiliares no desenvolvimento da rotina procedimental, a verdadeiros analistas de petições e compositores de decisões.
Em recente pesquisa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que 66% dos Tribunais do Brasil operam algum tipo de plataforma de inteligência artificial (IA).
Na maioria das vezes, as IAs são utilizadas para apoio em funções administrativas, aumentando a eficiência e precisão em tarefas repetitivas, como classificação de processos e documentos, tarefa mais que bem-vinda em um ambiente que concentra quase oitenta e quatro milhões de processos dentre noventa e um tribunais.
No Supremo Tribunal Federal (STF), há três plataformas de IAs atualmente operantes: Rafa 2030, Victor e VitorIA.
Rafa 2023 é uma IA “lançada em 2022 para apoiar a classificação de acórdãos ou de petições iniciais em processos do STF” via “comparação semântica”.
Victor é utilizado desde 2017 para análise de temas de repercussão geral e na triagem de recursos recebidos dos VitorIA, a mais jovem das IAs da Suprema Corte, promete “ampliar o conhecimento sobre o perfil dos processos recebidos no STF e permitir o tratamento conjunto de temas repetidos ou similares”.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), as principais IAs são Athos e Socrates. Enquanto aquele apoia na “triagem e identificação de processos que possam ser submetidos à afetação”, este “faz a análise semântica das peças processuais para facilitar a triagem, identificar casos semelhantes e pesquisar precedentes”.
O uso de plataformas de IAs não se limita ao Judiciário. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) anunciou que passará a utilizar de nova ferramenta de IA, batizada de IARA, que, dentre outras atribuições “compõe decisões com base em jurisprudências”. A promessa é de “uma redução drástica no tempo médio de tramitação processual, de seis anos para apenas um”.
Enquanto VitorIA é capaz de permitir o tratamento conjunto de temas repetidos no STF, Sócrates faz análise semântica e analisa peças processuais no STJ. IARA, por sua vez, é declaradamente apta a compor decisões no CARF.
A tarefa de julgar é das mais complexas, sensíveis e importantes em um Estado de Direito
Todas as linhas filosóficas que se propõem a sistematizar o Direito convergem quanto à importância da interpretação no processo de formação de convencimento. Como exemplo, Neil MacCormick propõe a “dialética do debate sobre o razoável” como técnica de aplicação do Direito e forma de se chegar às razões que indiquem qual a melhor decisão a ser tomada.
Não se nega a utilidade de ferramentas de IA para auxílio em tarefas operacionais junto aos tribunais. Preocupa, contudo, o rápido avanço que tais plataformas vêm experimentando, passando, em poucos anos, de meros auxiliares no desenvolvimento da rotina procedimental, a verdadeiros analistas de petições e compositores de decisões.
IAs são formadas por algoritmos, conjuntos de instruções ou regras que dizem ao sistema como processar informações e tomar decisões. Baseiam-se, assim, em dados e, por mais avançados que possam ser, podem refletir vieses preexistentes, o que coloca em xeque um dos elementos basilares da função jurisdicional: a imparcialidade.
Atribuir a máquinas a prerrogativa de julgar também pode implicar em falta de transparência quanto ao processo de formação de convencimento e razões que levaram a determinado entendimento, sendo urgente a conferência de ampla publicidade quanto aos parâmetros de programação das IAs que apoiam a confecção de decisões, sob risco de se ferir às garantias de imparcialidade, igualdade, ampla defesa e, em última análise, à própria segurança jurídica.
Não por acaso, o Marco da IA, recém aprovado pelo Senado, classifica em seu texto original como de “alto risco” os sistemas de IAs utilizados na administração da justiça, incluindo sistemas que auxiliem autoridades judiciárias na investigação dos fatos e na aplicação da lei.
Igualmente urgente a necessidade de garantia de conferência de segurança a tais IAs que, se corrompidas, podem implicar em resultados ainda mais desastrosos na prestação jurisdicional.
É necessário um profundo debate sobre o tema que, até aqui, vem envelopado como um mero incremento tecnológico em prol da celeridade. A sociedade merece entender todos os impactos da utilização de plataformas de IAs no apoio à confecção de decisões administrativas e judiciais e ter pleno acesso a de que modo e em que nível esta utilização se dá.
Por mais inteligentes que possam ser, IARAs e VitórIAs continuam sendo artificiais. Falta-lhes o essencial caráter humano para desempenhar o sensível papel de julgar. Não há processo dialético e tampouco debate no mundo das IAs.
O artigo foi produzido pelo SouzaOkawa Advogados e publicado pelo Estadão. Para acessar na íntegra, acesse o link abaixo.